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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A Igreja de Combray

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs







[Em suas recordações de infância, Proust descreve a igreja de Saint Hilaire, em Combray, cidade na qual sua família costumava passar férias.]



Combray, de longe, a dez léguas em volta, vista da estrada de ferro quando lá chegávamos na última semana antes da Páscoa, não era senão uma igreja resumindo a cidade, representando-a, falando dela e por ela aos distantes.

E, de perto, mantendo apertados em torno de sua alta manta sombria, em pleno campo, como uma pastora protegendo do vento suas ovelhas, os dorsos lanudos e acinzentados das casas ajuntadas, que um resto de muralhas da Idade Média cercava aqui e acolá com um traço tão perfeitamente circular quanto uma cidadezinha num quadro de pintor medieval.

Como eu a amava, como eu me recordo bem de nossa igreja.

Seu velho pórtico pelo qual entrávamos, negro, esburacado como uma escumadeira, era irregular e profundamente gasto nos ângulos (da mesma maneira que a pia de água benta à qual ele nos conduzia) como se o doce roçar das mantas das camponesas entrando na igreja e de seus dedos tímidos tomando água benta pudesse, repetido durante séculos, adquirir uma força destrutiva, infletir a pedra e entalhar sulcos como traça a roda das carroças no marco contra o qual ela se choca todo dia.

Suas lápides mortuárias, sob as quais a nobre cinza dos vigários de Combray, lá enterrados, dava ao coro um como que chão espiritual, elas mesmas não eram mais de matéria inerte e dura, porque o tempo as havia tornado doces e feito escorrer como mel para fora dos limites de seu próprio alinhamento que aqui elas ultrapassavam por uma onda dourada, levando à deriva uma maiúscula gótica florida, afogando as violetas brancas do mármore; do lado de cá das quais, aliás, elas se tinham desfeito, contraindo ainda a elíptica inscrição latina, introduzindo um capricho a mais na disposição desses caracteres abreviados, aproximando duas letras de uma palavra da qual as outras haviam sido exageradamente afastadas.

Seus vitrais nunca reluziam tanto quanto nos dias em que o sol se mostrava pouco, de sorte que fizesse (tempo) cinza fora, estava-se seguro que seria bonito na igreja.

Um vitral era preenchido em toda sua grandeza por um só personagem semelhante a um rei de jogo de cartas, que vivia lá em cima, sob um dossel arquitetural, entre o céu e a terra.

Noutro, uma montanha de neve rósea, ao pé da qual se desenrolava um combate, parecia ter orvalhado a vidraçaria com turvos granizos, como um vidro no qual tivessem restado flocos iluminados por alguma aurora (pela mesma sem dúvida que cobria de púrpura o retábulo do altar de tons tão frescos que mais pareciam colocados ali momentaneamente por um luar vindo de fora prestes a se evanescer do que por cores aderida para sempre à pedra).

E todos eram tão antigos que se via aqui e ali sua velhice prateada faiscar da poeira dos séculos e mostrar brilhante e gasto até à corda o enredo de sua doce tapeçaria de vidro.

Havia um que era um alto compartimento dividido em uma centena de pequenos vitrais retangulares onde dominava o azul, como um grande jogo de cartas semelhante àqueles que deviam distrair o rei Carlos VI; mas, fosse um raio de sol que tivesse brilhado, fosse meu olhar que movendo-se tivesse passeado pelo vitral ora extinto ora aceso um fugaz e precioso incêndio, um instante depois ele tinha tomado o brilho cambiante de uma cauda de pavão, depois tremia e ondulava em uma chuva chamejante e fantástica que escorria do alto da ogiva sombria e rochosa, ao longo das paredes úmidas, como se eu seguisse meus pais, que levavam o seu missal, pela nave de alguma gruta irisada por sinuosas estalactites.

Um instante depois os pequenos vitrais em losango tinham tomado a infrangível rigidez de safiras que tivessem sido justapostas sobre algum imenso peitoral, mas atrás das quais se sentia, mais apreciável que todas estas riquezas, um sorriso momentâneo do sol.

Ele era também reconhecível tanto no jorro azul e doce com o qual banhava as pedras quanto sobre o calçamento da praça ou sobre a palha de chão do mercado.

E, mesmo em nossos primeiros domingos, quando chegávamos antes da Páscoa (durante o inverno), consolava-me que a terra estivesse ainda nua e negra, fazendo desabrochar, como numa primavera histórica e que datava dos sucessores de São Luis, esse tapete resplandecente e dourado de miosótis de vidro.

Duas tapeçarias, de tessitura vertical, representavam o coroamento de Ester, cujas cores, fundindo-se, lhes haviam acrescentado uma expressão, um relevo, uma iluminação: um pouco de rosa flutuava nos lábios de Ester para além do desenho de seu contorno, o amarelo de seu vestido se afirmava tão suntuosamente, tão abundantemente, que tomava uma espécie de consistência e sobressaia sobre a atmosfera intimidade; e o verdejante das árvores permanecendo vivo nas partes baixas do panejamento de seda e de lã, mas tendo ‘passado’ (desbotado) no alto, fazia destacarem-se, mais palidamente, acima dos troncos escuros, os elevados galhos amarelados, dourados e como que meio apagados pela brusca e obliqua iluminação de um sol invisível.

Tudo isso, e mais ainda os objetos preciosos vindos à igreja de personagens que eram para mim quase personagens de legenda (a cruz de ouro lavrada, dizia-se, por Santo Elói e doada por Dagoberto; o túmulo de porfírio e de cobre esmaltado dos filhos de Luis, o Germânico), em razão do que eu avançava na igreja, quando nos dirigíamos aos bancos, como num vale visitado por fadas, onde o camponês se maravilha de ver num rochedo, numa árvore, numa poça, o vestígio palpável de sua passagem sobrenatural.

Tudo isso fazia dela para mim alguma coisa de inteiramente diferente do resto de cidade: um edifício ocupando, se se pode dizer, um espaço em quatro dimensões ‒ a quarta sendo a do Tempo ‒ fazendo progredir através dos séculos sua nave que, de viga em viga, de capela em capela, parecia vencer e singrar, não apenas alguns metros, mas as épocas sucessivas das quais ela saía vitoriosa.

* * *

Reconhecíamos o campanário de Saint Hílaire de bem longe, inscrevendo sua figura inesquecível no horizonte no qual Combray não aparecia ainda.

Num dos mais longos passeios que fazíamos saindo de Combray, havia um lugar onde a estrada apertada desembocava de repente sobre um imenso ‘plateau’ limitado ao horizonte por florestas recortadas que somente a fina ponta do campanário de Saint Hilaire ultrapassava, mas tão esguia, tão rósea, que parecia apenas riscada no céu por uma unha que tivesse querido dar a essa paisagem, esse quadro só de natureza, essa pequena marca de arte, essa única indicação humana.

Quando nos aproximávamos e podíamos perceber o resto da torre quadrada e semi-destruída que, menos alta, subsistia ao lado dele, ficávamos surpreendidos sobretudo pelo tom avermelhado e sombrio das pedras; e em uma manhã brumosa de outono, dir-se-ia, elevando-se por cima do violeta tempestuoso das parreiras, uma ruiva de púrpura quase da cor de vinha virgem.

Com freqüência, sobre a praça, quando voltávamos, minha avó me fazia parar para observá-lo.

Das janelas de sua torre, situadas duas a duas, umas em cima das outras, com essa justa e original proporção nas distâncias que não pertence senão à beleza e à dignidade dos rostos humanos, ele soltava, deixava cair a intervalos regulares revoadas de corvos que durante um momento giravam grasnando, como se as velhas pedras que os deixavam divertir-se sem os parecer ver, tornadas de repente inabitáveis e libertando um princípio de agitação infinita, os tivesse batido e enxotado.


Então, depois de ter rajado em todos os sentidos o veludo violeta do ar da tarde, bruscamente acalmados, eles tornavam a se absorver na torre, de nefasta voltada a ser novamente propícia, alguns pousados aqui e ali, não pareciam mexer-se, mas abocanhando quiçá algum inseto, sobre a campânula de um sinozinho, como uma gaivota parada com a imobilidade de um pescador à crista de uma onda.

Sem muito saber bem por que, minha avó encontrava no campanário de Saint Hílaire essa ausência de vulgaridade, de pretensão, de mesquinharia, que a fazia amar e crer ricas de uma influência benfazeja, a natureza, quando a mão do homem não a havia apequenado, e as obras de gênio.

E sem duvida, toda a arte da igreja que se percebia a distinguia de outro edifício por uma espécie de pensamento que lhe era infuso, mas era em seu campanário que ela parecia tomar consciência de si mesma, afirmar uma existência individual e responsável. Era ele que falava por ela.

Creio que, confusamente, sobretudo o que minha avó encontrava no campanário de Combray era aquilo pelo que ela tinha maior apreço no mundo, o ar natural e o ar distinto (l’air naturel et l’air distingué).

Ignorante em arquitetura, ela dizia: “Meus filhos, riam de mim se quiserem, ele não é talvez belo segundo as regras, mas sua velha face bizarra me agrada.

“Estou certa que se ele tocasse piano, ele não tocaria ‘sec’”.

E olhando-o, seguindo com os olhos a doce tendência, a inclinação fervorosa de suas faixas de pedra que se aproximavam elevando-se como mãos juntas que rezam, ela unia-se tão bem à efusão da flecha, que seu olhar parecia lançar-se com ela; e ao mesmo tempo sorria amigavelmente às velhas pedras gastas das quais o poente não clareava senão o cimo, e que, a partir do momento em que entravam nessa zona ensolarada, suavizadas pela luz, pareciam repentinamente elevadas bem mais alto, longínquas, como um canto retomado ‘em voix de tête’ uma oitava acima.










(Autor : Marcel Proust, « À la recherche du temps perdu - Du coté de chez Swann », Librairie Gallimand, 1947, T. I, pp. 40 ; 47 a 51)





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