quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Cluny, a Jerusalém celeste encarnada (1)


Houve uma igreja medieval que foi a maior ‒ e no juízo dos contemporâneos ‒ a mais bela e esplendorosa da Idade Média.

Ela foi uma obra prima do estilo românico e dela brotou o estilo gótico.

Foi a igreja abacial de São Pedro de Cluny, mais conhecida como Cluny III, pois foi a terceira de uma série construída, uma após a outra, no mosteiro de Cluny, na Borgonha‒França. Cluny foi a mais grande, deslumbrante, poderosa e influente abadia da Era da Luz.

A Basílica de São Pedro no Vaticano foi feita do tamanho atual para superar a Cluny III e poder ser o maior templo da Igreja Católica e da Cristandade.

De São Pedro de Cluny hoje só ficam ruínas como resultado do feroz ódio anti-cristão da Revolução Francesa.

Entretanto, o mito da fantástica abadia, coração monacal da Europa medieval, não só não morreu, mas tem surpreendente renascer no século XXI.

O prof. Ricardo da Costa elaborou valioso estudo sobre aquela que foi considerada a “Jerusalém celeste encarnada”, e do qual reproduzimos excertos nos posts seguintes.



(No tempo da fundação de Cluny) O mundo religioso também enfrentava uma grave decadência, especialmente após a dissolução do Império Carolíngio e os ataques vikings no final do século IX.

Brasão da abadia de Cluny: as chaves de São Pedro e uma espada.
Abadias foram destruídas, comunidades dispersadas, a Regra de São Bento esquecida. Ermentário, um monge de Saint-Philibert de Noirmoutier, escreveu em meados do século IX:

O número de navios aumenta; a multidão inumerável de normandos não pára de crescer; de todos os lados cristãos são vítimas de massacres, pilhagens, devastações, incêndios (...) tomam todas as cidades que atravessam (...) muitas cinzas de santos são roubadas (...) quase não há localidade, nenhum mosteiro que seja respeitado, e raros são aqueles que ousam dizer: fiquem, fiquem, resistam... (citado em D'HAENENS, 1997: 89)

Cluny III, imagem de sintese
Marc Bloch chegou a afirmar que a desordem resultante das tormentas vikings e magiares do século IX deixou o corpo social do ocidente medieval “coberto de feridas”; a vida intelectual sofreu muito com isso, pois o monarquismo decaiu profundamente (BLOCH, 1987: 57).

O papado também sofreu: no início do século XI, estava dominado pela nobreza germânica, que elegia e depunha papas a seu bel-prazer. Por sua vez, corruptos e devassos, os papas distinguiram-se por suas orgias e subornos.


Simonia e nepotismo, desejo de possuir coisas impuras: cupiditas (DUBY, 1992: 51). Pecado capital. Escândalo. João XII (955-964), por exemplo, foi acusado por seus cardeais de subornar bispos, cometer adultério com a concubina de seu pai e incesto com sua mãe; Benedito IX (1032-1044), igualmente devasso, vendeu o cargo a Gregório VI (1045-1046) por moedas de ouro, sendo deposto por isso (DUFFY, 1998: 87).

Senhores feudais também indicavam abades para os mosteiros, apropriando-se de suas rendas. Parecia que o mundo espiritual estava irrevogavelmente destruído. Fim dos tempos, apocalipse. São Eudes de Cluny (†942) disse:
...alguns clérigos desconsideram tanto o Filho da Virgem que praticam a fornicação em suas próprias dependências, até mesmo nas casas construídas pela devoção dos fiéis a fim de que a castidade possa ser conservada dentro de seus recintos cercados; inundam-nas com tanta luxúria que Maria não tem lugar para deixar o Filho Jesus (citado em DURAND, s/d: 475-476) Obs: Freqüentemente Eudes é mencionado como Odon).