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terça-feira, 14 de outubro de 2025

A Missa numa catedral medieval

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
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Os capítulos que Guilherme Durand (séc. XIII) consagrou à explicação da Missa então entre os mais surpreendentes de sua obra: “Rational”.

Eis aqui, por exemplo, como ele interpreta a primeira parte do Divino Sacrifício.

“O canto grave e triste do Introito abre a cerimônia: ele exprime a espera dos Patriarcas e dos Profetas. O coro dos clérigos representa o côro dos Santos da Antiga Lei, que suspiram antes da vinda do Messias, que eles, entretanto não verão”.

“O bispo entra, então, e ele aparece como a figura viva de Jesus Cristo. Sua chegada simboliza o aparecimento do Salvador, esperado das nações”.

“Nas grandes festas leva-se diante dele sete tochas, para lembrar que, segundo a palavra do Profeta, os sete dons do Espírito Santo repousam sobre a cabeça do Filho de Deus. Ele se adianta sob um pálio triunfal, do qual os quatro carregadores são comparados aos quatro Evangelistas.

“Dois acólitos caminham à sua direita e à sua esquerda, e representam. Moisés e Elias, que se mostraram no Thabor dos dois lados de Nosso Senhor. Eles nos ensinam que Jesus tinha por Si a autoridade da Lei e a autoridade dos Profetas”.

“O bispo senta-se em seu trono e permanece silencio. Ele parece não desempenhar nenhum papel na primeira parte da cerimônia. Sua atitude contém um ensinamento: ela nos recorda pelo seu silêncio, que os primeiros anos da vida de Nosso Senhor se desenrolaram na obscuridade e no recolhimento”.

“O Sub-Diácono, entretanto, dirige-se para a cátera, e, voltado para a direita, lê a Epístola em alta voz. Entrevemos aqui o primeiro ato do drama da Redenção.

“A leitura da Epístola, é a pregação de São João Batista no deserto. Ele fala antes que o Salvador tenha começado a fazer ouvir Sua voz, mas ele não fala senão aos judeus.

“Também o Sub-Diácono, imagem do Precursor, se volta para o norte, que é o lado da Antiga Lei. Quando a leitura termina, ele se inclina diante do bispo, como o Precursor se humilhou diante de Nosso Senhor”.

“O canto do Gradual, que segue a leitura da Epístola, se reporta ainda à missão de São João Batista: ele simboliza as exortações à penitência que ele fez aos judeus, à espera dos tempos novos”.

“Enfim, o Celebrante lê o Evangelho. Momento solene, porque é aqui que começa a vida pública do Messias, Sua palavra se faz ouvir pela primeira vez no mundo. A leitura do Evangelho é a figura de Sua pregação".

“O Credo segue o Evangelho, como a fé segue o anúncio da verdade. Os doze artigos do Credo se reportam à vocação dos doze Apóstolos”.

“Quando o Credo termina, o bispo se levanta e fala ao povo. Escolhendo esse momento para instruir os fiéis, a Igreja quis lhes recordar o milagre de Sua expansão.

“Ela lhes mostra como a verdade, recebida antes somente pelos doze Apóstolos, se espalhou em um instante, no mundo inteiro”.

Tal é o senso místico que Guilherme Durand atribuiu à primeira parte da Missa.

Depois dessa espécie de preâmbulo, ele chega à Paixão e ao Sacrifício da Cruz. Mas aqui, seus comentários tornam-se tão abundantes e seu simbolismo tão rico, que é impossível, por uma simples análise, dar uma idéia. É necessário que se vá ao original.

Nós dissemos bastante, entretanto, para deixar entrever alguma coisa do gênio da Idade Média.

Pode-se imaginar tudo que uma cerimônia religiosa continha de ensinamentos, de emoção e de vida para os cristãos século XIII.

Um uso tão constante do simbolismo pode deixar estupefato alguém que não esteja familiarizado com a Idade Média.

É preciso porém não fazer como fizeram os beneditinos do século XVIII, não ver ali senão um simples jogo de fantasia individual.

Sem dúvida, tais interpretações não foram nunca aceitas como dogmas. Não obstante, é notável que elas quase nunca variam. Por exemplo, Guilherme Durand, no século XIII, atribui a estola o mesmo significado que Amalarius no século IX.

Mas o que é mais interessante aqui, mais do que a explicação tomada em si, é o estado de espírito que ela supunha. E o desdém pelo concreto; é a convicção profunda de que, através de todas as coisas desse mundo se pode chegar ao espiritual, pode-se entrever Deus. Eis aqui o verdadeiro gênio da Idade Média.

(Autor: Emile Mâle, “L'Art Religieux du XIII Siècle en France”, Librairie Armand Colin, 1958, pag. 51)

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Abadia de SOLESMES: arca de salvação

A vida na solidão acompanhado por Deus
A vida na solidão acompanhado por Deus
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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Às cinco da manhã ainda está escuro no verão e no inverno faz muito frio.

A cidade toda de Solesmes dorme bem arroupada enquanto o velho sininho da abadia se põe a repicar com sua milenar nota.

Os monges estão sendo convocados a cantar a primeira Hora do dia.

Silhuetas silenciosas se encaminham para a igreja fazendo deslizar seus hábitos pretos sobre o chão de pedra.

De ali a pouco suas vozes entoam as antífonas, leituras e salmos à glória dAquele que os convocou ali.

“Qui bene cantat, bis orat” “Quem canta bem, reza duas vezes”) ensinou Santo Agostinho.

Em Solesmes os monges cantam sete vezes por dia, trinta e cinco horas por semana, explica o Pe. Paul-Alain.

No brilho do olhar dos monges percebe-se a plenitude do gáudio sobrenatural que enche suas almas.

O costume se repete há mil e quinhentos anos na abadia de Saint Pierre de Solesmes, na região da Sarthe, França, num antegosto terrestre da vida eterna.

Não foi um milênio e meio fácil.

O inferno se abateu sobre Solesmes que foi preciso reconstruir em 1869.

Solesmes foco de restauração do canto gregoriano.
Solesmes: foco de restauração do canto gregoriano.
A Revolução Francesa não tolerou essa antessala da Corte Celeste cujo nome o igualitarismo revolucionário não conseguia sequer pronunciar sem blasfemar, e a arruinou.

Em 1833, entre as ruínas deixadas pelo tufão do ódio revolucionário, um jovem sonhava com os monges que outrora animaram aquele lugar destruído onde os anjos pareciam chorar.

Seu nome era Prosper Pascal Guéranger, nascido em 1805, fervente admirador dos magníficos grupos escultóricos de “Les Saints de Solesmes” entalhados nos séculos XV e XVI.

Ele haveria de se tornar eclesiástico e reunir os recursos para comprar e restaurar o priorado.

Acabaria sendo o homem símbolo da recuperação da Ordem Beneditina no século XIX e o grande restaurador do canto gregoriano.

Dom Guéranger abriu a avenida mística dos homens que por vezes com menos de 20 anos ouviram o chamado de Deus e se embrenharam pelo que os comuns chamam de deserto, mas que comunica uma prelibação do Céu.

Mas eles percebem que o deserto do desespero está na agitação do mundo.

'Quem canta bem, reza duas vezes' ensinou Santo Agostinho
'Quem canta bem, reza duas vezes', ensinou Santo Agostinho
O Pe. Rafael tinha se graduado em Minas e um belo futuro se abria diante dele. Mas algo de enorme lhe faltava.

“A sociedade moderna só funciona por e para o dinheiro. Mas essa não é a finalidade da vida humana! Foi então que Cristo veio me colher.

“Era como se uma luz apontasse para mim e me penetrasse completamente. Eu percebia uma inteligência, uma pessoa por trás dessa luz que me dizia: ‘Eu te conheço e eu te amo’.”

No 8 de dezembro de 2011, Rafael ingressava no noviciado de Saint Pierre de Solesmes.

A agenda do monge é extraordinariamente cheia. Acordar às 5:00 horas para cantar em gregoriano: Matinas às 5:30 e Laudes às 7:30h. Missa às 10:00. Canto de Sexta às 13:00; Nona às 13:50; Vésperas às 17 e Completas às 20:30.

“O canto gregoriano, como toda forma de beleza, tem qualquer coisa de Deus”, explica o prior Pe. Geoffroy.

“Se há tantos visitantes tocados por Solesmes é porque eles fazem a experiência sensível da fé por meio do canto.

“Frequentemente as pessoas as mais afastadas da Igreja são as mais tocadas por esta experiência, ainda quando não entendem o latim, que lhes revela o caráter infinitamente sagrado de Deus”.

A soma das idades rumo à eternidade.
A soma das idades rumo à eternidade.
“Por vezes me ocorre a ideia, diz o escritor Julien Green, que estes religiosos vivem um imenso sonho litúrgico quando, na realidade, são eles que estão na verdade e somos nós que vivemos num sonho que a todo momento vira pesadelo”.

Toda manhã antes da Missa, cada beneditino lê um trechinho da Bíblia ou dos escritos dos Padres e Doutores da Igreja.

Alguns fazem verdadeiros trabalhos de pesquisa que culminam em publicações. Livros são lidos durante as refeições e a biblioteca da abadia é de uma riqueza inaudita.

Além do trabalho intelectual, eles têm o manual: alguns são padeiros, outros alfaiates, sapateiros, jardineiros, encadernadores, carpinteiros ... Todos ao serviço da comunidade monástica.

O irmão Lionel diz “eu rezo trabalhando a madeira. Com o trabalho manual, o homem está chamado a participar na obra da Criação.

O trabalho manual é obrigatório
O trabalho manual é obrigatório
“E ainda cometendo erros o trabalho humano é infinitamente preferível ao da máquina.

“À perfeição maquinal se opõe a perfeição da alma humana, e de Deus que está nela, completando a obra criadora.

“Olhe esta tábua de madeira com seus nós e imperfeições: não é a imagem da alma humana com suas asperezas e seus limites que Deus vem a encher com sua graça?”

O irmão Lionel parte para atender seus pobres miseráveis que vem de toda parte da França porque sabem que em Solesmes, em conformidade com a Regra de São Bento, são recebidos como se eles fossem o próprio Cristo.

E então para o que é que serve um monge no século XXI?

“O monge por definição não serve para nada aos olhos do mundo, responde frei Geoffroy.

“Não se pode esperar de nós nem eficácia nem rentabilidade”.

Eles só fazem uma coisa aos olhos de outros: fascinam. São procurados ainda que mais não seja para passar perto deles um instante, de vê-los rezar e sentir um pouco da paz que reside neles.

“O homem no seu cerne está animado pelo desejo do infinito, diz frei Boralevi,

A vida monástica, reflexo da vida celeste.
A vida monástica, reflexo da vida celeste.
“Ele tem a necessidade de sentir que é possível existir uma relação como a que nós temos com Deus.

“Essa relação constante de coração a coração com nosso Criador é a vocação derradeira de todo ser humano”.

Alguns que batem na porta do mosteiro estão a anos luz da religião cristã, mas todos são acolhidos.

O atrativo é enorme, mas poucos são os que se engajam. É difícil renunciar às solicitações da vida moderna.

“Elas oferecem uma ilusão de liberdade e uma ideia aliás muito pálida da felicidade.

“Só a fé em nosso Salvador pode encher a alma humana, porque ela comunica uma esperança imensa”, completa frei Geoffroy.


(Fonte: “No segredo de uma abadia milenar”, Ghislain de Montalembert, “Le Figaro Magazine”, 20 de dezembro de 2019, págs. 50-61)


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terça-feira, 16 de setembro de 2025

A igreja de COMBRAY

Luis Dufaur
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[Em suas recordações de infância, Proust descreve a igreja de Saint Hilaire, em Combray, cidade na qual sua família costumava passar férias.]



Combray, de longe, a dez léguas em volta, vista da estrada de ferro quando lá chegávamos na última semana antes da Páscoa, não era senão uma igreja resumindo a cidade, representando-a, falando dela e por ela aos distantes.

E, de perto, mantendo apertados em torno de sua alta manta sombria, em pleno campo, como uma pastora protegendo do vento suas ovelhas, os dorsos lanudos e acinzentados das casas ajuntadas, que um resto de muralhas da Idade Média cercava aqui e acolá com um traço tão perfeitamente circular quanto uma cidadezinha num quadro de pintor medieval.

Como eu a amava, como eu me recordo bem de nossa igreja.

Seu velho pórtico pelo qual entrávamos, negro, esburacado como uma escumadeira, era irregular e profundamente gasto nos ângulos (da mesma maneira que a pia de água benta à qual ele nos conduzia) como se o doce roçar das mantas das camponesas entrando na igreja e de seus dedos tímidos tomando água benta pudesse, repetido durante séculos, adquirir uma força destrutiva, infletir a pedra e entalhar sulcos como traça a roda das carroças no marco contra o qual ela se choca todo dia.

Suas lápides mortuárias, sob as quais a nobre cinza dos vigários de Combray, lá enterrados, dava ao coro um como que chão espiritual, elas mesmas não eram mais de matéria inerte e dura, porque o tempo as havia tornado doces e feito escorrer como mel para fora dos limites de seu próprio alinhamento que aqui elas ultrapassavam por uma onda dourada, levando à deriva uma maiúscula gótica florida, afogando as violetas brancas do mármore; do lado de cá das quais, aliás, elas se tinham desfeito, contraindo ainda a elíptica inscrição latina, introduzindo um capricho a mais na disposição desses caracteres abreviados, aproximando duas letras de uma palavra da qual as outras haviam sido exageradamente afastadas.

Seus vitrais nunca reluziam tanto quanto nos dias em que o sol se mostrava pouco, de sorte que fizesse (tempo) cinza fora, estava-se seguro que seria bonito na igreja.

Um vitral era preenchido em toda sua grandeza por um só personagem semelhante a um rei de jogo de cartas, que vivia lá em cima, sob um dossel arquitetural, entre o céu e a terra.

Noutro, uma montanha de neve rósea, ao pé da qual se desenrolava um combate, parecia ter orvalhado a vidraçaria com turvos granizos, como um vidro no qual tivessem restado flocos iluminados por alguma aurora (pela mesma sem dúvida que cobria de púrpura o retábulo do altar de tons tão frescos que mais pareciam colocados ali momentaneamente por um luar vindo de fora prestes a se evanescer do que por cores aderida para sempre à pedra).

E todos eram tão antigos que se via aqui e ali sua velhice prateada faiscar da poeira dos séculos e mostrar brilhante e gasto até à corda o enredo de sua doce tapeçaria de vidro.

Havia um que era um alto compartimento dividido em uma centena de pequenos vitrais retangulares onde dominava o azul, como um grande jogo de cartas semelhante àqueles que deviam distrair o rei Carlos VI; mas, fosse um raio de sol que tivesse brilhado, fosse meu olhar que movendo-se tivesse passeado pelo vitral ora extinto ora aceso um fugaz e precioso incêndio, um instante depois ele tinha tomado o brilho cambiante de uma cauda de pavão, depois tremia e ondulava em uma chuva chamejante e fantástica que escorria do alto da ogiva sombria e rochosa, ao longo das paredes úmidas, como se eu seguisse meus pais, que levavam o seu missal, pela nave de alguma gruta irisada por sinuosas estalactites.

Um instante depois os pequenos vitrais em losango tinham tomado a infrangível rigidez de safiras que tivessem sido justapostas sobre algum imenso peitoral, mas atrás das quais se sentia, mais apreciável que todas estas riquezas, um sorriso momentâneo do sol.

Ele era também reconhecível tanto no jorro azul e doce com o qual banhava as pedras quanto sobre o calçamento da praça ou sobre a palha de chão do mercado.

E, mesmo em nossos primeiros domingos, quando chegávamos antes da Páscoa (durante o inverno), consolava-me que a terra estivesse ainda nua e negra, fazendo desabrochar, como numa primavera histórica e que datava dos sucessores de São Luis, esse tapete resplandecente e dourado de miosótis de vidro.

Duas tapeçarias, de tessitura vertical, representavam o coroamento de Ester, cujas cores, fundindo-se, lhes haviam acrescentado uma expressão, um relevo, uma iluminação: um pouco de rosa flutuava nos lábios de Ester para além do desenho de seu contorno, o amarelo de seu vestido se afirmava tão suntuosamente, tão abundantemente, que tomava uma espécie de consistência e sobressaia sobre a atmosfera intimidade; e o verdejante das árvores permanecendo vivo nas partes baixas do panejamento de seda e de lã, mas tendo ‘passado’ (desbotado) no alto, fazia destacarem-se, mais palidamente, acima dos troncos escuros, os elevados galhos amarelados, dourados e como que meio apagados pela brusca e oblíqua iluminação de um sol invisível.

Tudo isso, e mais ainda os objetos preciosos vindos à igreja de personagens que eram para mim quase personagens de legenda (a cruz de ouro lavrada, dizia-se, por Santo Elói e doada por Dagoberto; o túmulo de porfírio e de cobre esmaltado dos filhos de Luis, o Germânico), em razão do que eu avançava na igreja, quando nos dirigíamos aos bancos, como num vale visitado por fadas, onde o camponês se maravilha de ver num rochedo, numa árvore, numa poça, o vestígio palpável de sua passagem sobrenatural.

Tudo isso fazia dela para mim alguma coisa de inteiramente diferente do resto de cidade: um edifício ocupando, se se pode dizer, um espaço em quatro dimensões ‒ a quarta sendo a do Tempo ‒ fazendo progredir através dos séculos sua nave que, de viga em viga, de capela em capela, parecia vencer e singrar, não apenas alguns metros, mas as épocas sucessivas das quais ela saía vitoriosa.

* * *

Reconhecíamos o campanário de Saint Hílaire de bem longe, inscrevendo sua figura inesquecível no horizonte no qual Combray não aparecia ainda.

Num dos mais longos passeios que fazíamos saindo de Combray, havia um lugar onde a estrada apertada desembocava de repente sobre um imenso ‘plateau’ limitado ao horizonte por florestas recortadas que somente a fina ponta do campanário de Saint Hilaire ultrapassava.

Mas tão esguia, tão rósea, que parecia apenas riscada no céu por uma unha que tivesse querido dar a essa paisagem, esse quadro só de natureza, essa pequena marca de arte, essa única indicação humana.

Quando nos aproximávamos e podíamos perceber o resto da torre quadrada e semi-destruída que, menos alta, subsistia ao lado dele, ficávamos surpreendidos sobretudo pelo tom avermelhado e sombrio das pedras; e em uma manhã brumosa de outono, dir-se-ia, elevando-se por cima do violeta tempestuoso das parreiras, uma ruiva de púrpura quase da cor de vinha virgem.

Com freqüência, sobre a praça, quando voltávamos, minha avó me fazia parar para observá-lo.

Das janelas de sua torre, situadas duas a duas, umas em cima das outras, com essa justa e original proporção nas distâncias que não pertence senão à beleza e à dignidade dos rostos humanos, ele soltava, deixava cair a intervalos regulares revoadas de corvos que durante um momento giravam grasnando, como se as velhas pedras que os deixavam divertir-se sem os parecer ver, tornadas de repente inabitáveis e libertando um princípio de agitação infinita, os tivesse batido e enxotado.


Então, depois de ter rajado em todos os sentidos o veludo violeta do ar da tarde, bruscamente acalmados, eles tornavam a se absorver na torre, de nefasta voltada a ser novamente propícia, alguns pousados aqui e ali, não pareciam mexer-se, mas abocanhando quiçá algum inseto, sobre a campânula de um sinozinho, como uma gaivota parada com a imobilidade de um pescador à crista de uma onda.

Sem muito saber bem por que, minha avó encontrava no campanário de Saint Hílaire essa ausência de vulgaridade, de pretensão, de mesquinharia, que a fazia amar e crer ricas de uma influência benfazeja, a natureza, quando a mão do homem não a havia apequenado, e as obras de gênio.

E sem duvida, toda a arte da igreja que se percebia a distinguia de outro edifício por uma espécie de pensamento que lhe era infuso, mas era em seu campanário que ela parecia tomar consciência de si mesma, afirmar uma existência individual e responsável. Era ele que falava por ela.

Creio que, confusamente, sobretudo o que minha avó encontrava no campanário de Combray era aquilo pelo que ela tinha maior apreço no mundo, o ar natural e o ar distinto (l’air naturel et l’air distingué).

Ignorante em arquitetura, ela dizia: “Meus filhos, riam de mim se quiserem, ele não é talvez belo segundo as regras, mas sua velha face bizarra me agrada.

“Estou certa que se ele tocasse piano, ele não tocaria ‘sec’”.

E olhando-o, seguindo com os olhos a doce tendência, a inclinação fervorosa de suas faixas de pedra que se aproximavam elevando-se como mãos juntas que rezam, ela unia-se tão bem à efusão da flecha, que seu olhar parecia lançar-se com ela; e ao mesmo tempo sorria amigavelmente às velhas pedras gastas das quais o poente não clareava senão o cimo, e que, a partir do momento em que entravam nessa zona ensolarada, suavizadas pela luz, pareciam repentinamente elevadas bem mais alto, longínquas, como um canto retomado ‘em voix de tête’ uma oitava acima.




(Autor : Marcel Proust, « À la recherche du temps perdu - Du coté de chez Swann », Librairie Gallimand, 1947, T. I, pp. 40 ; 47 a 51)



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terça-feira, 2 de setembro de 2025

Catedral de São Marcos, VENEZA:
“Igreja Católica é isto! Ó Igreja Católica!”

Luis Dufaur
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É noite em Veneza. Na Praça de São Marcos a onda de turistas está ausente, os pombos estão dormindo, a catedral apresenta-se em sua majestosa solidão.

Esplendidamente iluminada, deixando perceber o branco reluzente do mármore, seus pormenores e a linha geral do conjunto.

Nesta magnífica catedral de São Marcos distinguem-se três profundidades.

Em primeiro lugar as arcadas, que têm como centro um arco maior apresentando magnífico mosaico, e acima dele um terraço.

Em seguida a parte superior desse primeiro corpo do edifício, com uma espécie de ogiva central muito grande.

Nela se percebem os famosos cavalos, dois torreões, e de cada lado ogivas bem abertas encimadas com figuras.

A terceira parte é constituída pela cúpula da catedral e algumas torrezinhas.

A iluminação ressalta a parte branca do edifício, que assim parece constituída de tijolinhos de açúcar.

Mas notam-se também sombras cheias de mistério nessa esplêndida galeria de arcos do andar térreo.

Diante desta catedral, forma-se em nossa mente uma impressão marcante: o espírito de fé com que ela foi construída.

E, a partir desse espírito de fé, a aspiração do maravilhoso e do grandioso manifestada em louvor de São Marcos.

É uma das mil cintilações deslumbrantes do espírito católico, levando-nos a exclamar:

“Igreja Católica é isto! Ó Igreja Católica!”.



(Fonte: Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, 11/01/1989.  Excertos sem revisão do autor.)



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