Incêndio da catedral de Chartres em 4 de junho de 1836. François Alexandre Pernot (1793-1865). Musée des Beaux-Arts de Chartres. |
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
Deus costuma escrever certo por linhas tortas — é o que a sabedoria popular ensina aos nossos atribulados dias.
E na História, mestra da vida, os exemplos são incontáveis: muitas enfermidades levaram pecadores a abandonar seus pecados; insensatos recuperaram o juízo, ante os desastres que provocaram; catástrofes foram anunciadas por Nossa Senhora em Fátima, no final das quais os homens abandonariam os maus costumes; mais próximo de nós, o incêndio que devorou o telhado da catedral de Notre Dame de Paris já inspira reações benéficas em não poucos.
Em que sentido?
Lendo o historiador da arte Émile Mâle (1862-1954) — membro da elite suprema da intelectualidade universal, que é a Académie Française — uma pergunta me ficou na cabeça, e seguramente se apresenta na de muitos católicos: por que a Providência teria permitido que um fogo com furor infernal devorasse o teto de um símbolo tão sublime da Igreja Católica?
Aquele ditado da sabedoria popular tem uma confirmação nos escritos, visões e ensinamentos de uma das maiores místicas da França, Marie des Vallées (1590-1656), que foram anotados por São João Eudes e adotados por São Luís Maria Grignion de Montfort, o grande mestre da devoção a Nossa Senhora.
São Luís Maria Grignion de Montfort: “Ah!, permiti-me bradar por toda parte: fogo, fogo, fogo! Socorro, socorro, socorro! Fogo na casa de Deus, fogo nas almas, fogo até no santuário!” |
Renovando fervorosamente esse pedido à Santíssima Trindade e a Nossa Senhora, a resposta negativa de Deus Pai foi simplesmente: “NÃO!”.
Isto me deixou pasmo, pois os raciocínios humanos são pobres, sobretudo quando desamparados pela perspectiva histórica com que Deus conduz os eventos humanos.
O próprio São João Eudes não conteve a sua admiração, e concluiu: “Pelo seu poder admirável, e por uma bondade incomparável, Deus forçará os nossos inimigos a contribuir para a nossa salvação”.
Os inimigos a que se referia São João Eudes são os demônios e seus asseclas, e ele pensava no abalo universal que Deus previa para salvar os bons desanimados, desconhecedores do satânico processo revolucionário que naquela época já corroía ativamente até os melhores, mas ainda de maneira secreta.
Olhando as imagens do incêndio de Notre Dame, notadamente a queda de sua simbólica agulha, podia-se imaginar demônios soprando as chamas e atiçando-as contra a casa de Nossa Senhora (ainda se discute se houve participação humana, da qual há indícios, talvez de alguns muçulmanos suspeitos mas não identificados).
Marie des Vallées ouviu também Deus Pai dando ordens aos diabos: “Ide! Eu vos envio como trombetas para acordar os meus filhos que estão adormecidos na sombra da morte” (isto é, do pecado).
As outras pessoas da Santíssima Trindade, e também Maria Santíssima, falaram no mesmo sentido, e ao final foi dada uma ordem aos demônios: “Ide, como soldados encolerizados, prender aqueles que não quererão se converter”.
São João Eudes acrescenta que os diabos saíram para cumprir essa missão na Terra.
Mas, assim agindo, farão os homens ruins ou relaxados “sofrer tantos tormentos, que se sentirão como se estivessem obrigados a fazer penitência”. Lembremos que penitência foi o grande pedido de Nossa Senhora em Fátima!
Chartres restaurada identica ao modelo queimado.
Algo disso não explicaria as tragédias e as dores que sofremos coletivamente? E não se daria o mesmo na nossa vida individual?
Meditando nisso, voltei ao erudito livro Notre Dame de Chartres, e Émile Mâle.
A atual catedral é um dos mais imponentes edifícios góticos da Europa, e é consagrada a Nossa Senhora.
Foi reconstruída sete vezes, cada vez maior, mais bela e mais sacral.
Conduzido por um guia, pode-se ver até os fundamentos da primeira humilde catedral.
A atual surgiu sobre as ruínas da sexta reedificação.
Essa havia sido levantada pelo bispo D. Fulberto (970-1028), no início do século XI, e foi restaurada por Santo Ivo (1040-1115).
Pouco antes da metade do século XII, foi feito um campanário separado da igreja, correspondendo à atual torre norte, em estilo românico, completada no século XVI por uma flecha gótica.
Segundo Émile Mâle, as gerações que fizeram as cruzadas tinham amor à grandeza, e o senso da simetria os levou a erguer, do lado sul, um campanário similar.
Decidiu-se que as duas torres não ficariam isoladas, e que a catedral seria ampliada até incluí-las.
Chartres, catedral atual restaurada idêntica após numerosos incendios |
A fachada antiga foi desmontada pedra por pedra, e refeita unindo as duas torres, ampliando assim a catedral.
Essas altas torres em louvor à Santa Mãe de Deus suscitaram até na Inglaterra um entusiasmo atestado por muitos relatos da época.
Notre Dame de Chartres era o maior santuário mariano da Cristandade, cujo maior tesouro é o véu de Nossa Senhora, uma relíquia venerada até hoje.
De modo similar, Notre Dame de Paris conservou a Coroa de Espinhos desde que a Revolução Francesa depredou a Sainte Chapelle, construída para guardar essa santa relíquia.
Em 11 de junho de 1194, um pavoroso incêndio consumiu o teto de Chartres, que era feito em madeira como o de Notre Dame de Paris.
O velho edifício ardeu durante três dias, sendo comparativamente bem maior que o de Paris.
Em 1506, mais um fogo violento chegou a derreter até os sinos.
O telhado de Chartres voltou a ser abrasado em 4 de junho de 1836, quando as chamas atingiram 15 metros de altura.
Mas os bombeiros conseguiram salvá-lo, e dois anos depois ele estava refeito; contrariando o “desejo” da imprensa, que havia declarado a destruição “irreparável”. Houve ainda tempestades de raios que atingiram a torre sul em 1539, 1573 e 1589; e contra a agulha, como agora em Paris, em 1701 e 1740.
O incêndio de 1194 foi furiosamente impiedoso.
O véu de Nossa Senhora sai da catedral em procissão. |
Mas Émile Mâle narra que a sofrida população não se angustiou tanto com suas perdas.
Apinhada diante da catedral fumegante, e com lágrimas nos olhos, o que todos queriam saber era como se encontrava o véu de Nossa Senhora, mas não era ainda possível ingressar no recinto.
De repente, como numa visão sobrenatural, viram sair uma procissão de dentro do amontoado de pedras calcinadas.
Eram sacerdotes levando nos ombros o grande relicário, com o véu surpreendentemente preservado.
Os clérigos de Chartres haviam corrido para salvar a relíquia, mas ficaram envoltos pelo fogo e se refugiaram na cripta inferior, até que pudessem sair.
A alegria foi imensa.
No momento, o bispo, os cônegos e os homens ricos da região engajaram parte de suas fortunas e proventos para erigir uma nova catedral, ainda mais admirável.
O mesmo gesto de generosidade que se repetiu agora, por numerosos milionários, empresas e particulares do mundo todo, em favor da restauração da catedral parisiense.
Continua no próximo post: Chartres e a reconstrução prodigiosa filha da graça da penitência
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