Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
[A restauração da Catedral de Notre-Dame foi feita por Vioilet-le-Duc no século XIX. Um dos fatos que mais contribuiu para que se empreendesse tal restauração foi o romance de Victor Hugo, “Notre-Dame de Paris”. E, neste, especialmente o trecho que transcrevemos abaixo.]
Sem dúvida é ainda hoje um majestoso e sublime edifício a igreja de Notre-Dame de Paris.
Mas, por mais bela que tenha se conservado ao envelhecer, é difícil não lamentar, não se indignar ante as degradações, as mutilações sem nome que simultaneamente o tempo e os homens infligiram no venerável monumento, sem respeito por Carlos Magno que pôs a primeira pedra, por Felipe Augusto que pôr a última.
Sobre a face desta velha rainha de nossas catedrais, ao lado de uma ruga acha-se sempre uma cicatriz. “Tempus edax, homo edacier” (O tempo é voraz; o homem, ainda mais). O que eu traduziria, sem hesitação, assim: “o tempo é cego; o homem, estúpido”.
Se tivermos o trabalho de examinar um a um com o leitor os diversos traços de destruição impressos na antiga igreja, a parte do tempo será a menor; a pior é a dos homens, sobretudo dos homens de arte.
É preciso que eu diga “os homens de arte”, uma vez que houve indivíduos que assumiram a qualidade de arquitetos nos dois últimos séculos.
E, antes, para não citar senão alguns exemplos capitais, existem, sem dúvida, poucas páginas arquiteturais mais belas do que essa fachada na qual se encontram, sucessivamente e ao mesmo tempo, os três portais vazados em ogiva, o cordão bordado e rendado dos vinte e oito nichos reais, a imensa rosácea central flanqueada pelas suas duas janelas laterais, como o padre pelo diácono e sub-diácono, a alta e frágil galeria de arcadas com trevos que sustenta uma pesada plataforma sobre suas finas colunetas, enfim as duas negras e maciças torres com seus telhados de ardósia, partes harmoniosas de um todo magnífico, superpostas em cinco estágios gigantescos, que se apresentam ao olhar, em multidão e sem perturbação, com seus inumeráveis detalhes de estatuária, de escultura e de cinzelagem, ligadas possantemente à tranqüila grandeza do conjunto.
Vasta sinfonia em pedra, por assim dizer. Obra colossal de um homem e de um povo. Produto prodigioso da cotização de todas as forças de sua época, na qual sobre cada pedra vê-se jorrar de cem maneiras a fantasia do artesão disciplinada pelo gênio do artista.
Espécie de criação humana, em uma palavra, possante e fecunda como a criação divina, da qual ela parece ter furtado a dupla característica: variedade, eternidade.
E o que dizemos aqui da fachada, é preciso dizer da igreja inteira. E o que dizemos da igreja catedral de Paris, é preciso dizer de todas igrejas da Cristandade na Idade Média.
Tem-se tudo nessa arte nascida de si mesma, lógica e bem proporcionada. Medir o dedo é medir o gigante.
Voltemos à fachada de Notre-Dame, tal como nos aparece ainda no presente, quando vamos piedosamente admirar a grave e poderosa catedral, que aterroriza, no dizer dos cronistas: “quae mole sua terrorem incutit spectantibus” (a qual por seu vulto incute medo aos que a vêem).
E se entrarmos no interior do edifício, quem derrubou esse colossal São Cristóvão, proverbial entre as estátuas ao mesmo título que a grande sala do Palácio (de Justiça) entre os recintos de reunião, que a flecha de Strasburgo entre os campanários?
E essa miríade de estátuas que povoavam todos os interstícios das colunas da nave e do coro, ajoelhadas, em pé, eqüestres, homens, mulheres, crianças, reis, bispos, guardas, em pedra, em mármore, em ouro, prata, cobre, em cera mesmo, quem brutalmente as varreu daí?
Não foi o tempo.
E quem substituiu ao velho altar gótico, esplendidamente repleto de escrínios e relicários esse pesado sarcófago de mármore feito de cabeças de anjos e de nuvens, o qual parece uma amostra desemparceirada de Val-de-Grâce ou dos Invalides?
Quem soltou estultamente esse pesado anacronismo de pedra no selo carolíngio de Hercandus?
Não foi Luiz XIV cumprindo o voto de Luiz XIII?
E quem colocou frios vidros brancos no lugar desses vitrais ‘hauts em couleur’ que faziam hesitar o olhar maravilhado de nossos pais entre a rosa do grande portal e as ogivas da abside?
E o que diria um sub-cantor da igreja do século XVI vendo a bela caiação amarela com a qual nossos arcebispos vândalos lambuzaram sua catedral?
Ele se lembraria que era a cor com a qual o carrasco pintava os edifícios celerados; lembrar-se-ia do hotel Petit-Bourbon, também todo melado de amarelo pela traição do condestável, “amarelo de tão boa tempera, diz Sauval, e tão bem executado, que mais de um século não pôde ainda fazê-lo perder sua cor”.
Ele creria que o lugar santo tornou-se infame, e rugiria.
E se subíssemos na catedral, sem nos determos em mil barbáries de todo gênero, o que se fez dessa encantadora pequena torre que se apoiava sobre a ponta de intersecção do transepto, e que, não menos frágil e não menos ousada que sua vizinha flecha – também destruída – da Sainte Chapelle, penetrava no céu, mais alta que as terras, ‘élancée’, aguda, serena, recortada de maneira a deixar passar a luz?
Um arquiteto de bom gosto (1787) a amputou e acreditou que bastava mascarar a chaga com esse largo emplastro de chumbo que parece a tampa de uma marmita.
Foi assim que a arte maravilhosa da Idade Média foi tratada em quase todos países, sobretudo na França.
Pode-se distinguir sobre sua ruína três espécies de lesões que indicam em diferentes profundidades: primeiramente, o tempo que insensivelmente abriu brechas aqui e ali e reboou por toda parte sua superfície; depois, as evoluções políticas e religiosas, que, cegas e coléricas por natureza, arrojaram-se em tumulto sobre ela, rasgaram sua rica veste de esculturas e de cinzelagens, cegaram suas rosáceas, romperam seus colares de arabescos e pequenas figuras, arrancaram suas estátuas, quer por sua mitra, quer por sua coroa; enfim, as modas, cada vez mais grotescas e tolas, que desde os anárquicos e esplêndidos desvios da Renascença, sucederam-se na decadência necessária da arquitetura.
As modas fizeram mais mal do que as revoluções.
Elas cortaram no vivo, elas atacaram a estrutura óssea da arte, cortaram, talharam, desorganizaram, mataram o edifício na forma como no símbolo, em sua lógica como em sua beleza.
E depois elas refizeram; pretensão que ao menos não tiveram nem o tempo, nem as revoluções. Elas afrontosamente colocaram, por ‘bon geste’, sobre as feridas da arquitetura gótica, seus miseráveis enfeitozinhos de um dia, suas fitas de mármore, seus pompons de metal, verdadeira lepra de ovos, de velutas, de contornos, de cortinas, de guirlandas, de franjas, de chamas de pedra, de nuvens de bronze, de cupidos gordos, de querubins inchados, que começa a devorar a face da arte no oratório de Catarina de Médicis, e a faz expirar, dois séculos depois, atormentada e caricatural, no ‘bourdoir’ da Du Barry.
Assim, para resumir os pontos que acabamos de indicar, três modalidades de devastações desfiguram hoje a arquitetura gótica.
Rugas e verrugas na epiderme, é a obra do tempo; vias de fato, brutalidades, contusões, fraturas, é a obra das revoluções desde Lutero até Mirabeau. Mutilações, amputações, deslocamento de membros, ‘restaurações’, é o trabalho, grego, romano e bárbaro, dos professores segundo Vitruvo e Vignele.
Essa arte magnífica que os vândalos produziram, os acadêmicos mataram. Aos séculos, às revoluções que devastam, veio se juntar à nuvem dos arquitetos de escola, patenteados, jurados e juramentados, degradando com o discernimento e a escolha de mau gosto, substituindo por chicórias de Luiz XV as rendas góticas, para a maior glória do Parthenon.
É o coice do asno no leão moribundo.
É o velho carvalho que se cerca e que, por cúmulo, é picado, mordido, despedaçado pelas lagartas.
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