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terça-feira, 4 de junho de 2019

Chartres e a reconstrução prodigiosa
filha da graça da penitência

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






Continuação do post anterior: Chartres, a catedral renascida das cinzas, exemplo para Paris





Entusiasmo, dedicação e penitência


Para restaurar a catedral na Chartres de 1194, um entusiasmo jamais visto se irradiou até os campos, contagiou o país e o outro lado do Canal da Mancha.

O Livre des Miracles de Notre Dame, escrito na época, descreve uma epopeia coletiva, onde multidões vieram oferecer seu trabalho.

Ricos e pobres empurravam carroças carregadas de pedras e material de construção, mas também de vinho, trigo e alimentos para os voluntários engajados no imenso canteiro de obras.

Reviviam-se assim as jornadas de 1144, durante a construção das torres e da fachada.

Robert de Torigni, abade do Monte Saint-Michel, escreve em sua Crônica:

“Viram-se em Chartres fiéis que se atrelavam a carros carregados com pedras, madeira, trigo e tudo o que poderia ser utilizado nos trabalhos da catedral, cujas torres cresciam como por arte de magia.

“O entusiasmo tomou conta da Normandia e da França: em todos os lugares se viam homens e mulheres a arrastar fardos pesados através de pântanos lamacentos; por toda parte se fazia penitência; em todo lugar perdoavam-se os inimigos”.



Os voluntários de Pithiviers estavam tão cansados quando atravessaram Puiset, que os habitantes locais quiseram aliviá-los da carga.

Mas os de Pithiviers fizeram questão de honra carregar os fardos até o fim, pois não queriam perder os méritos da peregrinação.

O historiador Émile Mâle sublinha que a França vivia num estado de heroísmo e desejo de ganhar méritos com o próprio sacrifício, o mesmo motor que levava os cruzados a reconquistar Jerusalém.

O norte da França estava em comoção.

A generosidade popular enchia os cofres de esmolas.

A narração do milagre do véu de Nossa Senhora comovia as multidões.

Repetiam-se as cenas dos anos anteriores, quando Haimon, abade de Saint-Pierre-sur-Dives, descrevia aos monges ingleses de Tutbury os eventos extraordinários da Normandia:

“Vemos milhares de fiéis, homens e mulheres, se atrelarem a pesados carros.

“Entre aqueles servos voluntários há senhores poderosos e mulheres de nobre berço.

“Entre eles reina a mais perfeita disciplina e um profundo silêncio.

“Durante a noite eles se reúnem num acampamento com suas carroças, o iluminam com velas e entoam cânticos.

“Eles trazem seus doentes, na esperança de que serão curados.

O ambiente sobrenatural de Notre Dame de Chartres, relicário do véu de Nossa Senhora
O ambiente sobrenatural de Notre Dame de Chartres,
relicário do véu de Nossa Senhora
“Está estabelecida a união dos corações; e se alguém está tão endurecido que não perdoa seus inimigos, a sua oferenda é removida da carroça como algo impuro, e ele próprio é expulso com nota de ignomínia da sociedade do povo santo.”

Hugo, arcebispo de Rouen, informava a Thierry, bispo de Amiens, que os normandos, tendo ouvido falar do que acontecia em Chartres, se empenharam em imitar o exemplo.

Constituíram associações, e após terem confessado seus pecados, se atrelaram às carroças sob a liderança de um chefe.

Acrescenta o arcebispo:

“Nós permitimos a nossos diocesanos praticarem esta devoção em outras dioceses”.


As bênçãos provenientes da graça

Não espanta, pois, que o Livre des Miracles descreva prodígios da graça.

Em Soissons, um jovem inglês doou para a imagem de Nossa Senhora um colar de ouro que comprara para uma moça de Londres, com quem iria se casar.

O sacrifício não foi fácil, mas ele o fez pela Virgem Santíssima.

Na noite seguinte lhe apareceram três damas de uma beleza extraordinária.

A mais bela de todas se apresentou: era Nossa Senhora, e levava no pescoço o colar que ele havia doado, agradecendo-lhe o presente.

O rei inglês Ricardo Coração de Leão, ouvindo a história de seu súdito, ficou tão tocado que, não satisfeito com a doação, foi a Chartres para carregar em procissão o grande relicário do véu.

O rei Ricardo estava em guerra com o rei francês Felipe Augusto, mas a doce influência da devoção a Nossa Senhora reconciliou os inimigos.

Por toda parte narravam-se prodígios de caridade e penitência operados nos canteiros de obras, ou em todo lugar onde algum devoto se desprendia de um bem, renunciava a uma dívida, perdoava um adversário, tudo pelo bem da catedral de Chartres.

Príncipes e plebeus preferiam trabalhar como serventes de pedreiro para a casa de Nossa Senhor. Vitral de Chartres
Príncipes e plebeus queriam trabalhar como serventes de pedreiro
para a casa de Nossa Senhor. Vitral de Chartres
Émile Mâle acrescenta que, mesmo não conhecendo a História, é impossível negar que uma catedral assim não poderia ser erguida em tão pouco tempo, e com tanta grandeza, se não houvesse um élan de amor e entusiasmo sem precedentes.

Na ordem medieval houve um impulso de fé, abnegação e espírito de sacrifício, do qual a reconstrução de Chartres foi o mais belo exemplo.


Mais que em todo o Egito antigo

No seu livro “As raízes das catedrais” (“Les racines des cathédrales”, Payot, Paris, 2011, 330 p.), o arquiteto, historiador e geógrafo Roland Bechmann calculou que em três séculos a França carreou mais pedras que o Egito antigo em toda a sua história.

Construía-se e se reconstruía.

O que assim se erguia era um autêntico código simbólico artístico católico, que por meio de figuras ensinava os homens a verem em cada imagem uma outra realidade superior.

Chartres foi um paradigma do élan coletivo voltado para esse mundo superior.

O artista que esculpisse uma pedra para a catedral de Nossa Senhora tinha certeza de que imitava Deus, desejoso de que a matéria servisse de leitura para o homem.

O que via o pedreiro, atrelado à carroça rumo a Chartres?

O que via o monge contemplativo fechado em sua cela?

Ou o educador, meditando no claustro antes do sermão ou palestra?

A Idade Média respondia unanimemente: o mundo é um símbolo, e a catedral contém em si o resumo dos símbolos e dos simbolizados.

O mundo é um livro escrito pela mão de Deus. E construindo ou reconstruindo a catedral, até o mais humilde carregador de pedra coopera numa obra divina que o assemelha ao Criador.


Chartres, Paris e a promessa da conversão

Duas catedrais, dois incêndios, duas épocas separadas por nove séculos.

Dois eventos que estariam em pé de igualdade na presença de Deus, eterno e imutável.

Outras catedrais passaram por análogas provações e hoje brilham restauradas à l'identique. Antes e depois: Reims na I Guerra Mundial (Gustave Fraipont 1849 - 1923) e hoje
Outras catedrais passaram por análogas provações e hoje brilham restauradas à l'identique.
Antes e depois: Reims na I Guerra Mundial (Gustave Fraipont 1849 - 1923) e hoje
Mas haverá na nossa época a fé, a sensibilidade ao sobrenatural e ao maravilhoso, suficientes para refazer dignamente o que se queimou em Paris? Não nos faltam meios técnicos para isso, e temos recursos em muito maior escala do que havia em Chartres.

Mas antes de ocorrer o incêndio de Paris, a resposta prudente seria um rotundo NÃO.

Pois, sob o pretexto de modernidade, uma recusa ideológica à fé, sistemática e igualitária, impulsiona certos governantes ao contrário do que se realizou com o monumento medieval de Chartres.

Mas depois das chibatadas ígneas dos demônios, da qual falou Marie des Vallées, podemos agora constatar e enaltecer as reações comovidas de muitos que até há pouco não pareciam se importar com Notre Dame.

Reações que se multiplicam sobretudo ao ver os estandartes da TFP francesa em praças e avenidas de Paris, convocando os transeuntes a exigir a recuperação de Notre Dame à l’identique (do modo como era).

Diante de tantas reações assim, a resposta provável pode muito bem ser outra.





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